segunda-feira, 27 de maio de 2013

DEGREDO


Quando vais embora acorrento meu corpo,
Despedaço-me diante do mundo,
Perdido, sonâmbulo, irrompido para o nada,
Desgraçadamente por tua ausência.

Ausência de que, ausência por quê?
Pergunto-me na noite sem fim.
Ausência de ti,
Que já não sei mais quem é.

Sei apenas da tua ausência,
Porque fostes borbotada como a brisa
Ou, talvez, como o rocio da manhã
Que evapora, perfuma e vai-se embora.

Não há piedade na despedida
E o gosto desaparece com o desgosto
Da execrada distância que separa os corpos
E o meu suplica pelo que não mais tem.

E o ter, de repente,
Já não é mais poder, é despedida...
Despedida... Todos os dias eu despeço
E fico saudoso.

Não há mais como bulir
Não há como embriagar
Degredado estou,
Preso ao meu passado,
Ao que tive e ao que poderia ter.



Pedro Paulo de Oliveira
Direitos Autorais.




O AMOR, UMA SEMENTE



A semente não brota na pedra fria e seca.

O amor que deres hoje, será como a semente jogada na terra.

Se a terra for fértil, o amor florescerá e dará fruto.
Se a semente secar, tal como o amor,
mesmo assim não perecerá,
aguardando o dia de brotar.

Pedro Paulo de Oliveira.
Direitos Autorais.

sábado, 25 de maio de 2013

ESTRADA DE TERRA DE MINAS GERAIS


São estradas de terra,
Estradas de pedregulhos,
Estradas de poeira bruta,
Estradas para os pés do matuto.

Estradas cercadas de paus tortos,
Caminhos de arame farpado
Para o canto choroso do carro-de-boi,
Caminho eterno do gado.

É Minas Gerais de estradas de terra,
É Minas na curva da montanha,
Minas dos riachos e pontes de madeira
Lugar de povoados atrás das matas.

Minas Gerais das muitas fazendas
Sítios de histórias dos meus avós.
São tantas estradas em Minas Gerais!
Caminhos do ouro, caminho dos escravos,
Trilha das mulas e dos cavaleiros.

Estrada de terra comprida,
Estrada de terra envelhecida,
Estrada de terra endurecida.
Sua idade é a de Minas.

Leva-me pra cidadezinha,
Lá no alto da montanha,
Pra eu na noite de lua,
Escutar a arenga do caipira.


Guarda a alma do seu povo maneiro, mineiro que só.
Leva minha vida, que de cá, um dia, serei esse seu pó.

Pedro Paulo de Oliveira – Poema revisado
Direitos autorais


quinta-feira, 23 de maio de 2013

FILHO DO DESEJO


Olhe dentro dos meus olhos,
Verá o mundo inteiro,
O meu amor infinito
O meu desejo latente

Desejo ardente, premente.
Por que?
Porquê sou filho do desejo,
Desejo de vida, que dói, que vai.

Sou filho da luz e do vento,
Sou filho do tempo.
Que tempo?
Tempo que não conta, que não passa.

Sou filho do eterno, do infinito.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

A INOCÊNCIA E O ÓBVIO DA VIDA



Era uma daquelas tardes frias de primavera, quando a natureza, refletindo o resto da luz do dia, exala uma fragrância suave e enternecedora. Havia caído uma chuva leve e minha pequena neta Ana Clara olhou para o céu e me disse, com os olhos brilhando:

---Vovô, o céu está arrepiado e cheio de carneirinhos!

Algo extraordinário ocorreu naquele instante. Compreendi, um pouco, o sentido da vida, o porquê do amor que nutrimos pelas pessoas e a razão dos sentimentos que nos transformam em seres melhores, dotados de enternecimento e vontade de lutar e aprender. Aquela menina pequena, morena, de cabelos longos e olhos negros e amendoados, representava a inocência.

Depois, ela sorriu, abraçou minhas pernas e eu fiz uma viagem interior por países como a Etiópia, Haiti e Angola; e no Brasil, pelo Vale do Jequitinhonha e favelas espalhadas pelas grandes metrópoles. Vislumbrei tantas vidas olhando o céu, inocentes, em primaveras com gosto ocres, sobre escombros formados por bombas, em meio a corpos mutilados, ensanguentados e sem vidas. Vislumbrei existências órfãs, com o mesmo brilho nos olhos da minha pequena Ana Clara. Indaguei-me das razões que levam os seres humanos a se tornarem tão cruéis e insensíveis. Naquele instante não encontrei a resposta. Mas os pássaros me responderam no final do dia. Vi-os cantando para a vida, ajudando a perpetuar a primavera. Simplesmente faziam isso sem precisar destruir a natureza. Percebi que a ambição é a causa dos maiores males da humanidade. O ser humano jamais se contentará em tornar sua existência como a da criança e a do pássaro, por que o mundo está nas mãos de pessoas incapazes de ver que a nossa vida é apenas um momento sublime de encontro com a terra; que a vida é a dívida da própria vida, principalmente quando tentamos encontrar o nosso eu e nos deparamos com o inusitado: um olhar, um toque, uma estrela cadente... E temos vontade de abandonar tudo e partir em busca do desconhecido, sem compreender a razão.

É preciso coragem para sentir como as crianças e eu parabenizo a todos os heróis dotados de sentimentos puros que, mesmo sabendo que o perigo sempre os acompanhará, teimam em continuar a lutar pela preservação de uma existência digna para todos os seres humanos e, mesmo que lhes custe a vida, lutarão até o fim.



Pedro Paulo de Oliveira
Direitos Autorais

sábado, 18 de maio de 2013

NASCER E MORRER POR AMOR


Já é inverno e esqueço o verão
Procuro seu corpo nos campos dourados
Campos de milho feitos grãos vermelhos
Como seus lábios de vida, ardor e desejos.

Sinto o rocio na pele e arrepio diante do sol,
Você vem, caminha, não vejo mais nada,
Só quero seu seus braços e abraços
E perder-me nas suas entranhas molhadas.

Seus olhos me olham e flamejam
Suas garras me agarram
Seu corpo me envolve
Minha vida se esvai.

Choro e as lágrimas descem silenciosas,
lágrimas que prenunciam o gozo, o início e o fim,
meu ser vai se esvaindo,
perco o sentido, flutuo no meio da luz.

Morrer? O que me importa morrer depois do prazer,
Se vivi cada fugaz momento por este instante?
Minhas lutas, vitórias e derrotas que foram tantas
Só existiram para entregar-me a você.

Pedro Paulo de Oliveira – 18 de maio de 2013.
Direitos Autorais.

terça-feira, 14 de maio de 2013

O DOCE E INFINITO ORVALHO


O orvalho, doce infinito de uma obra prima,
Gota de cristal escorrendo lentamente
Condensada na penumbra do ocaso
Diante da luz, para diluir-se, desvanecer-se como um sopro.

Flui e percorre o caminho que escolheu para si.
Mas, prefere a folha e a pétala para a fecundação,
Deseja, infinitamente, para sempre, a vida,
E rola, desliza como uma pérola solta por casualidade da concha escura.

Num instante, ainda presente, de vida ardente,
Rola o orvalho e cai sobre o solo como chuva fina.
Fecunda a terra, húmus que se espalha,
A menina que olha e sonha todos os sonhos de criança,
Sonhos eternos como o orvalho.

Pedro Paullo – Outubro de 2012

segunda-feira, 13 de maio de 2013

OLHOS DE PÉROLA


Seus olhos têm o brilho da pérola e a força da sedução.
Dentro dos seus olhos vejo a magia e um desejo ainda reprimido,
Oh, musa inspiradora que faz brotar minha paixão,
Meu corpo espera por ti, sob a água, desejo incontido.

Seus olhos, mesmo distantes, têm o poder do encantamento,
Penetram a carne trêmula que há muito espera o desenlace
Trazida pelo rocio ao âmago da alcova
Que testemunhará o deleite perene da junção dos corpos.

É seus olhos, mulher, que agora me pertencem, eu busco...
A luz que nasce deles sai da sua alma
Eles têm a vida que procuro incessante, constante, eternamente.


Pedro Paullo – Outubro de 2012
Direitos Autorais



sábado, 11 de maio de 2013

MÃE... ETERNA MÃE


Mãe... Em qualquer tempo, em todo lugar...
Estarás viva, olhando-me, presente,
E eu aqui, buscando o brilho do seu olhar,
Serei para ti a criança sorridente.

Embora, mãe, não tenha mais seu aconchego,
Sinto ainda seu calor,
Sinto, ainda, seu chamego,
Sinto, ainda, seu amor.

Sim, serei sempre, sua criança,
Menino descalço, menino levado...
Levarei comigo a esperança
De um amor imaculado.

Amor de mãe que vai para o paraíso,
Mãe que vira estrela no firmamento
Para iluminar e dar juízo,
Carinho, sorriso e encantamento.

Receba, oh mãe, do seu menino,
Flores e o coração.
Dê, em troca, um sorriso genuíno...
E tenha minha eterna gratidão.

Pedro Paulo de Oliveira – 11 de maio de 2013
Direitos autorais.

FLOR NO ORIENTE



O solo preto de carvão diante dos olhos atônitos da menina
Que, antes, afável, embalava seus sonhos no jardim da primavera.
A cortina de fumaça trespassa sua alma e sufoca seu grito de agonia
Pela perda incontida das vidas inocentes.

A solidão é perene com a visão dos corpos mutilados nos destroços de cimento.
A menina caminha devagar, olha tudo à sua volta sem compreender a dor
Que, ao longe, se faz presente no clamor dos derrotados.

A paisagem se alarga com a vida quase extinta
Na órbita do olhar infantil e aterrorizado
Que pede socorro num brado mudo e desamparado.

Na ingenuidade, ela olha onde antes era o jardim,
E os folguedos se avivam na neblina poeirenta
Que envolve os soldados que vasculham o nada.

No solo chamuscado uma flor teima ainda viva,
Arrebatada pela pólvora e largada ao acaso no descaso de quem não a viu.
A menina se ajoelha e pega a flor ao lado de um corpo sem vida.
O soldado, de pé, no meio da neblina, olha assustado,
Vira-se, atira.
A menina segura a flor e a oferece ao soldado,
Sem compreender a dor que atravessa seu peito,
Os pequeninos olhos brilhando
Num último lampejo de luz e doçura.

Pedro Paulo de Oliveira – Texto revisado em 11 de maio de 2013.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

UMA GOTA DE ORVALHO



Pois havia uma gota de orvalho
Escorrendo pela vidraça,
Caiu na íris dos olhos da menina
Que, de inocente, pensou que era um diamante,
Mandado do céu.

A gota brilhante escorreu e escorreu,
Caiu no gramado e virou pedrinha de gelo,
No meio do todo transformou-se em geada,
E a menina olhou para mim e disse:
Pai... Olha quantas pérolas!




Para minha pequena Alline, que um dia pensou que as gotas de orvalho eram pedras preciosas caindo do céu.




Pedro Paulo de Oliveira – 10 de maio de 2013.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

AS TRÊS DIMENSÕES E A VIDA.



Dentro do meu eu, o mundo,
histórias de homens e mulheres...
Dentro do meu ser, a vida,
O infinito do mundo, a eternidade.

Existo no momento da concepção do todo,
um grão de poeira, flutuando pelo cosmo.
É isso... Sou poeira pairando no ar,
Levada pelo vento.

Não existe morte, não existe fim,
Eu me transformo no tempo e no espaço,
sou parte da força e da massa do ente eterno,
Do tempo-espaço e de tudo que é relativo.

Sei que habito o universo,
E jamais o deixarei, transmutando-me,
passando, intermitente, por cada dimensão,
Evento em busca da luz.

Sou efeito e causa de um desejo
Passando pelo cone de luz,
As vezes suave, por vezes um lampejo,
Muitas vezes como um raio, explodindo em fagulhas.

Meus olhos, em contínuo desejo,
Buscam a simetria no lugar, na distância
Na dimensão temporal, na dimensão espacial.

Sou parte das três dimensões
Sou a vida plena e perfeita,
Gravitando suave e harmônica,
Sou o infinito, sou o eterno.

Pedro Paulo de Oliveira - 09 de maio de 2013

Imagem: busca no Google.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

A VIDA DE CADA UM

O que seria da vida sem o mistério que envolve o universo?
O que seria da vida sem essa busca pelo inusitado
e sem os problemas para enfrentar todos os dias?


Seria uma vida vazia, perdida no escuro do vácuo de um espaço sem fim.


Pedro Paulo de Oliveira

quarta-feira, 1 de maio de 2013

O ESTRANHO DESTINO ILUMINADO DE ASCÂNIO



Conheci Ascânio numa dessas viagens inusitadas, onde tudo dava errado. Chovia torrencialmente havia três dias, desde 16 de setembro de 2001, quando o mundo ainda se sentia estarrecido com o impacto das explosões das Torres Gêmeas nos Estados Unidos, e que levou milhares de almas para outro planeta. É isso: as almas quando deixam os corpos, sejam elas juvenis, adultas ou velhas, vão para outro planeta onde está localizado o tão sonhado paraíso, ou o nirvana ou o céu.

Eu, na verdade, precisava chegar a São Tomé das Letras de qualquer jeito. Meu carro, uma velha variante II, não ajudava. Batia pino e deslizava com os seus pneus carecas no meio do barro, subindo a serra que parecia dar no topo do mundo. A água descia do céu como se caísse de uma cachoeira e formava uma corredeira marrom na estrada de terra que levava até o meu destino. A noite já se aproximava e o som dos trovões me assustava. Começou uma ventania infernal e o meu velho condutor balançava para os lados, resistindo, a duras penas, à subida íngreme. Não houve uma maneira de terminar aquela viagem sem que a noite chegasse. E ela veio assustadora, com os relâmpagos triscando no céu e o vendaval mandando galhos nos vidros do carro.

Faltando pouco mais de cinco quilômetros para chegar à cidade, escutei um estalo no motor da velha amiga. O motor passou a soar como uma máquina de picar cana e perdeu mais da metade da sua força. Eu estava ainda no meio da mata e dava para avistar um descampado. A chuva havia dado uma trégua, diminuindo de intensidade. Encostei-me a um trecho plano da estrada, abri um pouco a janela do carona para o vento entrar e desembaçar os vidros e decidi que ficaria ali até o dia amanhecer. Eu podia tentar ir a pé até a cidade. Mas, o veículo estava cheio de medicamentos, brindes, minha mala e minha pasta de trabalho. Como deixar todo esse material à mercê de algum ladrão que aparecesse todo feliz para levar meu patrimônio de viagem? Patrimônio de viagem de vendedor é o seu carro – velho ou novo -, e o resto que descrevi. É disso tudo que ele tira o seu e o sustento da sua família. O vendedor é um errante que leva um pouco de si para onde vai.

Aquela noite estava fadada ao inusitado na verdadeira concepção da palavra. Sentia-me demasiadamente cansado, depois da penúria subindo a serra, após uma longa viagem pelas Rodovias Fernão Dias e Vital Brasil, saindo de Cambuí.

Vendedor prevenido leva uma matula. A minha continha pão com mortadela, banana e guaraná. Abri-a, olhei para o lado de fora e vi que a chuva havia cessado de vez. Saí, urinei e comecei a comer, quando percebi algo estranho se movendo no meio da mata. Caramba! Aquilo me deixou muito assustado. Era uma aparição que se movia rapidamente na minha direção em forma de um grande morcego. Corri para dentro do carro, joguei a matula no banco e apanhei um porrete que sempre carregava debaixo do banco. – Como se aquele pedaço de pau ensebado e comprido fosse me salvar de algum bandido armado com uma pistola ou peixeira. - No entanto, eu escutei uma voz que me pediu:

---- Moço, não se assuste. Moro nestas bandas e vi seu carro parado. Vim ver se precisa de alguma coisa.

Foi então que vi o sujeito. Liguei os faróis que refletiram nele: um homem de meia idade, metido num imenso capote preto, fechado do peito até os pés por uma fileira de botões prateados e com a cabeça coberta por um chapéu, também preto, e com as abas que mais pareciam asas de morcego. Sem se importar com a luz, ele se aproximou do carro, do lado de onde eu estava ainda assustado, e iluminou meu rosto com o fogo de um isqueiro de querosene. Vi os seus olhos que me fixavam, pequenos, verdes e brilhantes. Ele soprou a chama, apagando-a e me disse:

---- Eu moro logo ali no alto, naquele descampado. Vamos até lá que carro não é lugar pra descansar.

Eu estava apavorado. O que levaria um sujeito a querer ajudar alguém no meio da noite, na escuridão, em um mundo tão pessoal e amedrontado? Contudo, a minha intuição mandava que aceitasse a ajuda daquele estranho. Eu respondi-lhe que não sabia se o carro aguentaria chegar até o local onde ele morava. Ele foi categórico:

---- Aguenta, sim. Esse motor está velho e cansado. Mas, ele é seu amigo.

Liguei o velho amigo e ele começou a subir penosamente o fim do morro e chegou ao descampado onde avistei uma casa de telhas de barro e brancas. Logo que desci, o homem chegou junto de mim, esticou a mão e se apresentou:

---- Meu nome é Ascânio e esta – Apontou na direção da casa - é a minha humilde moradia.

Fechei bem o carro e o segui para dentro da casa. Entrei e senti um aroma de flores silvestres, misturado com o cheiro de comida fresquinha. Não havia energia elétrica e um lampião a gás iluminava a sala cheia de quadros, esculturas e outras peças de artesanato. Alguns bancos e cadeiras de madeira envolviam uma mesa tosca no meio da qual sobressaia uma peça em forma de disco. Seguimos para a cozinha, e ele me falou da chuva como uma bênção do céu, e me serviu uma deliciosa janta composta de couve, angu, arroz, feijão e inhame.

---- Não como carne. Sou contra matar para sobreviver. As plantas existem para cumprir esta missão. – disse-me ele, enchendo o prato de inhame.

Mais tarde, ele me mostrou uma cama feita de bambu, pesa no piso e com um colchão de palha e capim. Explicou:

---- Vai estranhar dormir neste colchão. Mas vai se sentir bem amanhã. O travesseiro é de paina. Por aí fazem travesseiros de pena de galinha. Não gosto. Dá muito piolhinho.

Eu sorri e fui dormir. Acordei cedo no dia seguinte com o cheiro de café tomando conta da casa. Pude, então, observar melhor o meu anfitrião: beirando os sessenta anos, ele tinha os cabelos longos, cacheados e grisalhos nas raízes. Sua pele era rendada e as pregas se acentuavam mais na fronte, pois a barba que descia das maçãs do rosto escondia o resto dos vincos que o tempo lhe impregnou. Seus olhos pequeninos e verdes pareciam enxergar muito longe, como os do gavião que olha a presa do alto.

Tomei café com broa, agradeci a hospitalidade e desci na direção da cidade. Procurei, primeiro, uma oficina mecânica e descobri que o defeito do carro eram duas velas que estavam queimadas. Deixei o carro arrumando e iniciei meu trabalho a pé. Depois do almoço, peguei o companheiro de viagens e fui para a praça ao lado da igreja descansar. Mas, o velho Ascânio não saia da minha mente. À noite fui para uma pousada e, como bom vendedor, fiz amizade com o gerente.Lá pelas vinte horas, indaguei-lhe sobre o meu anjo da guarda da noite anterior.

O gerente, um sujeito muito branco e gordinho, que se chamava Felisberto, me encarou com os olhos arregalados e exclamou:

---- Jesus Cristo!

---- O que foi homem? – Perguntei, meio sem jeito.

Felisberto suspirou e comentou:

---- O Ascânio desceu do céu de novo.

Soltei o corpo na a poltrona, entre curioso e assustado, e pedi ao Felisberto que me esclarecesse aquele negócio de que o Ascânio havia descido de novo do céu. Ele olhou-me zombeteiro e disse:

---- O Ascânio já não pertence a este mundo faz um bom tempo. Mas, de vez em quando, desce de onde está para ajudar as pessoas. Parece que você foi escolhido na noite de ontem.

Foi assim que ouvi a história de Ascânio. Ele era daqueles sujeitos prosaicos, com destino certo, vagando pelas ruas estreitas da pequena São Tomé das Letras. Gostava de perambular pelos caminhos difíceis e cobertos de pedras daquela cidade feita sobre as montanhas, envolta nos mistérios apregoados por notívagos apreciadores do haxixe. Ele sabia de cor e salteado o nome de todos os moradores da cidade e conhecia cada pedra colocada nas suas vias ou nos seus prédios. Sua aparência era exatamente como a que se me apresentou naquela noite, mas seus olhos já estavam cansados e não suportavam mais o brilho incandescente do sol, disse-me Felisberto.

A casa de Ascânio ficava no alto, em um descampado com vista para o imenso vale cheio de cachoeiras que mais pareciam fiapos de tecido branco saindo das entranhas da terra. Era uma casa toda coberta de telhas coloniais e rodeada de árvores nativas e frutíferas. Ascânio a havia recebido de herança dos seus avós - porque pai não tivera, mas somente a mãe que morrera quando ele tinha apenas seis anos -. No imenso quintal que se estendia até a beirada da planície, ele plantava verduras e flores, criava minhocas e galinhas, com as quais arranjava o seu sustento.

Foi no outono de 1962 que Ascânio entendeu que estava na hora de comprar um chapéu de abas largas e um capote longo. O chapéu, além da utilidade que já definira no seu espírito, serviria ainda para proteger seus olhos cansados do sol, e o casaco aquecê-lo-ia nos longos dias de frio daquelas montanhas. O chapéu não foi difícil de encontrar. Comprou-o numa loja de produtos agrícolas onde adquiria todos os anos um par de botinas. Mas a procura pelo casaco foi árdua. Nenhuma loja da cidade tinha casacos longos para vender. Os vendedores e vendedoras tentavam empurrar-lhe blusas de lã, jaquetas, japonas:

---- Olha essa blusa que finura, Ascânio...

---- Ah, essa não serve. – Dizia com desalento, olhando as ofertas de agasalhos da loja – Quero um capote comprido e que desça até a canela.

---- Bom, Ascânio – diziam os vendedores – Esse tipo de roupa você só vai encontrar em Caxambu.

Ascânio deixava a loja frustrado. Não iria até Caxambu para comprar o seu capote. Avesso a viagens, era uma figura folclórica quanto ao gosto de não sair de São Tomé por nada deste mundo. Desde muito moço afirmava que um dia iria voar e, quando conseguisse, toda a gente da cidade poderia ver. Essa seria a sua única viagem. Ao longo do tempo as pessoas fizeram galhofas dele por conta dessa esquisitice, e ele respondia:

---- Vocês vão ver só quando eu voar. Vou para bem longe e vocês todos vão ficar aqui feitos bobos, com inveja.

Diziam as más línguas, naquela época, que ele gostava da “erva maldita” e a cultivava no meio das suas flores e verduras. Essa fofoca lhe rendeu uma operação policial que vasculhou toda a sua casa e pisoteou todos os seus canteiros. Ficou aborrecido por muitos dias. Mas, como não fora moldado para guardar mágoas ou engendrar vinganças contra as pessoas, logo esqueceu o sucedido e continuou a cuidar da vida.

Três vezes por semana, pela manhã, colhia flores e verduras, ajeitava tudo em molhos, colocava no carrinho de madeira junto aos ovos caipira e ia para a praça vender. Antes das onze horas o carrinho já estava vazio. Sentia-se, assim, realizado em continuar o ofício dos seus avôs.

Cada galinha do seu quintal botava em média três ovos por dia e o segredo eram as minhocas suculentas que Ascânio lhes dava. Três vezes ao dia a gritaria das galinhas chamava atenção dos vizinhos: às seis horas da manhã, ao meio-dia e às seis horas da tarde. Como um relógio exato, elas anunciavam, aos berros, novos ovos quentinhos.

---- Seis da manhã. Acorda para trabalhar que as galinhas do Ascânio já estão botando. - Afirmava a vizinha do lado para o seu marido, enquanto abria a janela.

---- Já vou, mulher. Nem adianta mesmo querer ficar na cama com essa banda de galinhas.

Os ladrões de galinha da cidade, mesmo sabendo que Ascânio não era um homem de violências, nunca ousaram invadir seu quintal, pois era fala geral que na sua casa moravam seres de outro mundo. Ele sabia disso e deixava a imaginação do povo fluir. Na praça, por muitos anos, contava que tinha sido escolhido para voar até as estrelas. Descrevia, em detalhes, que havia sido visitado por seres brilhantes e que passeou com eles numa nave prateada. Antes de eles irem embora, ensinaram-lhe novas técnicas para o cultivo das plantas e o cuidado com as galinhas. Foi assim que passou a criar minhocas, as galinhas passaram a botar três vezes por dia e as folhas das suas couves adquiriram um tom esverdeado escuro e o tamanho de um metro cada uma. Suas galinhas só morriam de velhice e ele as enterrava no meio das plantas para servirem de adubo.

Ascânio não achou o capote em nenhuma loja da cidade, mas descobriu um meio de adquiri-lo sem ter que viajar. Comprou seis metros de linho preto, mais seis metros malha, trinta e seis botões metálicos, foi até a costureira e a convenceu a fazer a peça como ele queria: comprida, larga, reforçada, com seis botões em cada manga e doze de cada lado para abotoar o casaco como quisesse. Ela lhe pediu o olho da cara pelo trabalho, mas ele nem se importou e em vinte dias a peça estava pronta. Estreou-a numa noite de muita serração e andou pela cidade orgulhoso da sua nova indumentária. Ao passar pelas ruas, com o chapéu de abas largas, com o capote fechado e os botões brilhando no meio da fumaça, as pessoas demoraram a reconhecê-lo e, quando o fizeram, muitos gritaram:

---- Hei, Ascânio, você esta parecendo um cavaleiro!

Ele respondia com uma reverência, sorria e continuava seu trajeto com a missão de percorrer todas as ruas da cidade. Assim, passou toda a metade do outono e Ascânio estava feliz. Contudo, numa noite em que o céu estava pipocado de estrelas e o vento zunindo nas orelhas, o povo estava todo reunido na praça, pois era festa junina, fogueira acesa, quentão, pipoca e dança de quadrilha. Muita gente no meio da festança começou a falar que as galinhas do Ascânio estavam gritando sem parar como se fossem botar ovos àquela hora da noite. No início, não deram importância para o fato inusitado, mas começaram a desconfiar de que algo estava errado quando mais e mais gente chegava com a mesma notícia. Enfim, formou-se um grande grupo de homens, mulheres e crianças que rumou na direção da casa de Ascânio. Lá chegando, constataram, surpreendidos, um total silêncio. Mas algo havia mudado radicalmente: a casa, com tudo à sua volta, havia desaparecido. No lugar onde estava a habitação de Ascânio só havia um descampado de terra vermelha e mole.

---- Cruz-credo! – gritou o açougueiro com os olhos arregalados – Onde foi parar a casa do Ascânio?

Ninguém sabia explicar o que estava acontecendo e as especulações começaram a fluir até que um grupo de garotos pôs-se a gritar e a mostrar para o céu na direção do vale. A serração daquele lado havia se dissipado e, pairando no ar, com o capote aberto e o chapéu de abas largas, Ascânio sorria e acenava para o povo.

---- Jesus! – Exclamou o sacristão – O padre não vai acreditar, pois ele disse que só os anjos e os santos podem voar. Homens de carne e osso, só de avião.

Uma estrela se destacava no céu e o seu brilho se aproximou de Ascânio que deu uma gargalhada e foi desaparecendo no meio dele, desvanecendo lentamente, como uma luz que vai diminuindo de intensidade até se apagar. Quando já não mais se via a figura de Ascânio no céu, a luz focou o povo no meio do descampado e todos ficaram olhando para cima, pasmados. Repentinamente uma chuva de ovos despencou do alto. Eram tantos ovos que homens, mulheres e crianças ficaram ensopados e formou-se uma imensa poça amarela e pegajosa no chão. As folhas de couve flutuavam no ar descendo lentamente e as crianças agarravam-nas, e as faziam de barcos para boiar sobre o lago de ovos despedaçados. Muitos adultos, ajoelhados, evocavam a Deus e exclamavam que Ascânio havia se tornado um santo; outros, saíram correndo para casa, arrastando seus filhos com medo se serem levados pela luz que vinha do céu; enquanto alguns poucos acreditavam que ele havia sido levado por um objeto voador não identificado.

No dia seguinte, a imensa poça de clara e gema havia secado e do meio do líquido endurecido brotavam flores brancas, amarelas, vermelhas, azuis, roxas e alaranjadas que se sobressaiam entre as folhas murchas de couve.

Nunca mais Ascânio foi visto andando pela cidade e tudo que se disse e ainda se fala dele e da sua casa por aquelas bandas de pedra parece uma lenda. A única coisa que o povo sabe de verdade é que ele cumpriu o que dizia: voou para o infinito, de chapéu e vestindo seu capote com trinta e seis botões prateados. Quanto a mim, nunca vou esquecer aquela noite em que comi arroz, feijão, couve, angu e inhame ao lado de um ser de outro mundo e dormi na sua cama feita de bambu e sobre um colchão de palha e capim.

Pedro Paulo de Oliveira – Texto revisado em 01 de maio de 2013.