quarta-feira, 1 de maio de 2013

O ESTRANHO DESTINO ILUMINADO DE ASCÂNIO



Conheci Ascânio numa dessas viagens inusitadas, onde tudo dava errado. Chovia torrencialmente havia três dias, desde 16 de setembro de 2001, quando o mundo ainda se sentia estarrecido com o impacto das explosões das Torres Gêmeas nos Estados Unidos, e que levou milhares de almas para outro planeta. É isso: as almas quando deixam os corpos, sejam elas juvenis, adultas ou velhas, vão para outro planeta onde está localizado o tão sonhado paraíso, ou o nirvana ou o céu.

Eu, na verdade, precisava chegar a São Tomé das Letras de qualquer jeito. Meu carro, uma velha variante II, não ajudava. Batia pino e deslizava com os seus pneus carecas no meio do barro, subindo a serra que parecia dar no topo do mundo. A água descia do céu como se caísse de uma cachoeira e formava uma corredeira marrom na estrada de terra que levava até o meu destino. A noite já se aproximava e o som dos trovões me assustava. Começou uma ventania infernal e o meu velho condutor balançava para os lados, resistindo, a duras penas, à subida íngreme. Não houve uma maneira de terminar aquela viagem sem que a noite chegasse. E ela veio assustadora, com os relâmpagos triscando no céu e o vendaval mandando galhos nos vidros do carro.

Faltando pouco mais de cinco quilômetros para chegar à cidade, escutei um estalo no motor da velha amiga. O motor passou a soar como uma máquina de picar cana e perdeu mais da metade da sua força. Eu estava ainda no meio da mata e dava para avistar um descampado. A chuva havia dado uma trégua, diminuindo de intensidade. Encostei-me a um trecho plano da estrada, abri um pouco a janela do carona para o vento entrar e desembaçar os vidros e decidi que ficaria ali até o dia amanhecer. Eu podia tentar ir a pé até a cidade. Mas, o veículo estava cheio de medicamentos, brindes, minha mala e minha pasta de trabalho. Como deixar todo esse material à mercê de algum ladrão que aparecesse todo feliz para levar meu patrimônio de viagem? Patrimônio de viagem de vendedor é o seu carro – velho ou novo -, e o resto que descrevi. É disso tudo que ele tira o seu e o sustento da sua família. O vendedor é um errante que leva um pouco de si para onde vai.

Aquela noite estava fadada ao inusitado na verdadeira concepção da palavra. Sentia-me demasiadamente cansado, depois da penúria subindo a serra, após uma longa viagem pelas Rodovias Fernão Dias e Vital Brasil, saindo de Cambuí.

Vendedor prevenido leva uma matula. A minha continha pão com mortadela, banana e guaraná. Abri-a, olhei para o lado de fora e vi que a chuva havia cessado de vez. Saí, urinei e comecei a comer, quando percebi algo estranho se movendo no meio da mata. Caramba! Aquilo me deixou muito assustado. Era uma aparição que se movia rapidamente na minha direção em forma de um grande morcego. Corri para dentro do carro, joguei a matula no banco e apanhei um porrete que sempre carregava debaixo do banco. – Como se aquele pedaço de pau ensebado e comprido fosse me salvar de algum bandido armado com uma pistola ou peixeira. - No entanto, eu escutei uma voz que me pediu:

---- Moço, não se assuste. Moro nestas bandas e vi seu carro parado. Vim ver se precisa de alguma coisa.

Foi então que vi o sujeito. Liguei os faróis que refletiram nele: um homem de meia idade, metido num imenso capote preto, fechado do peito até os pés por uma fileira de botões prateados e com a cabeça coberta por um chapéu, também preto, e com as abas que mais pareciam asas de morcego. Sem se importar com a luz, ele se aproximou do carro, do lado de onde eu estava ainda assustado, e iluminou meu rosto com o fogo de um isqueiro de querosene. Vi os seus olhos que me fixavam, pequenos, verdes e brilhantes. Ele soprou a chama, apagando-a e me disse:

---- Eu moro logo ali no alto, naquele descampado. Vamos até lá que carro não é lugar pra descansar.

Eu estava apavorado. O que levaria um sujeito a querer ajudar alguém no meio da noite, na escuridão, em um mundo tão pessoal e amedrontado? Contudo, a minha intuição mandava que aceitasse a ajuda daquele estranho. Eu respondi-lhe que não sabia se o carro aguentaria chegar até o local onde ele morava. Ele foi categórico:

---- Aguenta, sim. Esse motor está velho e cansado. Mas, ele é seu amigo.

Liguei o velho amigo e ele começou a subir penosamente o fim do morro e chegou ao descampado onde avistei uma casa de telhas de barro e brancas. Logo que desci, o homem chegou junto de mim, esticou a mão e se apresentou:

---- Meu nome é Ascânio e esta – Apontou na direção da casa - é a minha humilde moradia.

Fechei bem o carro e o segui para dentro da casa. Entrei e senti um aroma de flores silvestres, misturado com o cheiro de comida fresquinha. Não havia energia elétrica e um lampião a gás iluminava a sala cheia de quadros, esculturas e outras peças de artesanato. Alguns bancos e cadeiras de madeira envolviam uma mesa tosca no meio da qual sobressaia uma peça em forma de disco. Seguimos para a cozinha, e ele me falou da chuva como uma bênção do céu, e me serviu uma deliciosa janta composta de couve, angu, arroz, feijão e inhame.

---- Não como carne. Sou contra matar para sobreviver. As plantas existem para cumprir esta missão. – disse-me ele, enchendo o prato de inhame.

Mais tarde, ele me mostrou uma cama feita de bambu, pesa no piso e com um colchão de palha e capim. Explicou:

---- Vai estranhar dormir neste colchão. Mas vai se sentir bem amanhã. O travesseiro é de paina. Por aí fazem travesseiros de pena de galinha. Não gosto. Dá muito piolhinho.

Eu sorri e fui dormir. Acordei cedo no dia seguinte com o cheiro de café tomando conta da casa. Pude, então, observar melhor o meu anfitrião: beirando os sessenta anos, ele tinha os cabelos longos, cacheados e grisalhos nas raízes. Sua pele era rendada e as pregas se acentuavam mais na fronte, pois a barba que descia das maçãs do rosto escondia o resto dos vincos que o tempo lhe impregnou. Seus olhos pequeninos e verdes pareciam enxergar muito longe, como os do gavião que olha a presa do alto.

Tomei café com broa, agradeci a hospitalidade e desci na direção da cidade. Procurei, primeiro, uma oficina mecânica e descobri que o defeito do carro eram duas velas que estavam queimadas. Deixei o carro arrumando e iniciei meu trabalho a pé. Depois do almoço, peguei o companheiro de viagens e fui para a praça ao lado da igreja descansar. Mas, o velho Ascânio não saia da minha mente. À noite fui para uma pousada e, como bom vendedor, fiz amizade com o gerente.Lá pelas vinte horas, indaguei-lhe sobre o meu anjo da guarda da noite anterior.

O gerente, um sujeito muito branco e gordinho, que se chamava Felisberto, me encarou com os olhos arregalados e exclamou:

---- Jesus Cristo!

---- O que foi homem? – Perguntei, meio sem jeito.

Felisberto suspirou e comentou:

---- O Ascânio desceu do céu de novo.

Soltei o corpo na a poltrona, entre curioso e assustado, e pedi ao Felisberto que me esclarecesse aquele negócio de que o Ascânio havia descido de novo do céu. Ele olhou-me zombeteiro e disse:

---- O Ascânio já não pertence a este mundo faz um bom tempo. Mas, de vez em quando, desce de onde está para ajudar as pessoas. Parece que você foi escolhido na noite de ontem.

Foi assim que ouvi a história de Ascânio. Ele era daqueles sujeitos prosaicos, com destino certo, vagando pelas ruas estreitas da pequena São Tomé das Letras. Gostava de perambular pelos caminhos difíceis e cobertos de pedras daquela cidade feita sobre as montanhas, envolta nos mistérios apregoados por notívagos apreciadores do haxixe. Ele sabia de cor e salteado o nome de todos os moradores da cidade e conhecia cada pedra colocada nas suas vias ou nos seus prédios. Sua aparência era exatamente como a que se me apresentou naquela noite, mas seus olhos já estavam cansados e não suportavam mais o brilho incandescente do sol, disse-me Felisberto.

A casa de Ascânio ficava no alto, em um descampado com vista para o imenso vale cheio de cachoeiras que mais pareciam fiapos de tecido branco saindo das entranhas da terra. Era uma casa toda coberta de telhas coloniais e rodeada de árvores nativas e frutíferas. Ascânio a havia recebido de herança dos seus avós - porque pai não tivera, mas somente a mãe que morrera quando ele tinha apenas seis anos -. No imenso quintal que se estendia até a beirada da planície, ele plantava verduras e flores, criava minhocas e galinhas, com as quais arranjava o seu sustento.

Foi no outono de 1962 que Ascânio entendeu que estava na hora de comprar um chapéu de abas largas e um capote longo. O chapéu, além da utilidade que já definira no seu espírito, serviria ainda para proteger seus olhos cansados do sol, e o casaco aquecê-lo-ia nos longos dias de frio daquelas montanhas. O chapéu não foi difícil de encontrar. Comprou-o numa loja de produtos agrícolas onde adquiria todos os anos um par de botinas. Mas a procura pelo casaco foi árdua. Nenhuma loja da cidade tinha casacos longos para vender. Os vendedores e vendedoras tentavam empurrar-lhe blusas de lã, jaquetas, japonas:

---- Olha essa blusa que finura, Ascânio...

---- Ah, essa não serve. – Dizia com desalento, olhando as ofertas de agasalhos da loja – Quero um capote comprido e que desça até a canela.

---- Bom, Ascânio – diziam os vendedores – Esse tipo de roupa você só vai encontrar em Caxambu.

Ascânio deixava a loja frustrado. Não iria até Caxambu para comprar o seu capote. Avesso a viagens, era uma figura folclórica quanto ao gosto de não sair de São Tomé por nada deste mundo. Desde muito moço afirmava que um dia iria voar e, quando conseguisse, toda a gente da cidade poderia ver. Essa seria a sua única viagem. Ao longo do tempo as pessoas fizeram galhofas dele por conta dessa esquisitice, e ele respondia:

---- Vocês vão ver só quando eu voar. Vou para bem longe e vocês todos vão ficar aqui feitos bobos, com inveja.

Diziam as más línguas, naquela época, que ele gostava da “erva maldita” e a cultivava no meio das suas flores e verduras. Essa fofoca lhe rendeu uma operação policial que vasculhou toda a sua casa e pisoteou todos os seus canteiros. Ficou aborrecido por muitos dias. Mas, como não fora moldado para guardar mágoas ou engendrar vinganças contra as pessoas, logo esqueceu o sucedido e continuou a cuidar da vida.

Três vezes por semana, pela manhã, colhia flores e verduras, ajeitava tudo em molhos, colocava no carrinho de madeira junto aos ovos caipira e ia para a praça vender. Antes das onze horas o carrinho já estava vazio. Sentia-se, assim, realizado em continuar o ofício dos seus avôs.

Cada galinha do seu quintal botava em média três ovos por dia e o segredo eram as minhocas suculentas que Ascânio lhes dava. Três vezes ao dia a gritaria das galinhas chamava atenção dos vizinhos: às seis horas da manhã, ao meio-dia e às seis horas da tarde. Como um relógio exato, elas anunciavam, aos berros, novos ovos quentinhos.

---- Seis da manhã. Acorda para trabalhar que as galinhas do Ascânio já estão botando. - Afirmava a vizinha do lado para o seu marido, enquanto abria a janela.

---- Já vou, mulher. Nem adianta mesmo querer ficar na cama com essa banda de galinhas.

Os ladrões de galinha da cidade, mesmo sabendo que Ascânio não era um homem de violências, nunca ousaram invadir seu quintal, pois era fala geral que na sua casa moravam seres de outro mundo. Ele sabia disso e deixava a imaginação do povo fluir. Na praça, por muitos anos, contava que tinha sido escolhido para voar até as estrelas. Descrevia, em detalhes, que havia sido visitado por seres brilhantes e que passeou com eles numa nave prateada. Antes de eles irem embora, ensinaram-lhe novas técnicas para o cultivo das plantas e o cuidado com as galinhas. Foi assim que passou a criar minhocas, as galinhas passaram a botar três vezes por dia e as folhas das suas couves adquiriram um tom esverdeado escuro e o tamanho de um metro cada uma. Suas galinhas só morriam de velhice e ele as enterrava no meio das plantas para servirem de adubo.

Ascânio não achou o capote em nenhuma loja da cidade, mas descobriu um meio de adquiri-lo sem ter que viajar. Comprou seis metros de linho preto, mais seis metros malha, trinta e seis botões metálicos, foi até a costureira e a convenceu a fazer a peça como ele queria: comprida, larga, reforçada, com seis botões em cada manga e doze de cada lado para abotoar o casaco como quisesse. Ela lhe pediu o olho da cara pelo trabalho, mas ele nem se importou e em vinte dias a peça estava pronta. Estreou-a numa noite de muita serração e andou pela cidade orgulhoso da sua nova indumentária. Ao passar pelas ruas, com o chapéu de abas largas, com o capote fechado e os botões brilhando no meio da fumaça, as pessoas demoraram a reconhecê-lo e, quando o fizeram, muitos gritaram:

---- Hei, Ascânio, você esta parecendo um cavaleiro!

Ele respondia com uma reverência, sorria e continuava seu trajeto com a missão de percorrer todas as ruas da cidade. Assim, passou toda a metade do outono e Ascânio estava feliz. Contudo, numa noite em que o céu estava pipocado de estrelas e o vento zunindo nas orelhas, o povo estava todo reunido na praça, pois era festa junina, fogueira acesa, quentão, pipoca e dança de quadrilha. Muita gente no meio da festança começou a falar que as galinhas do Ascânio estavam gritando sem parar como se fossem botar ovos àquela hora da noite. No início, não deram importância para o fato inusitado, mas começaram a desconfiar de que algo estava errado quando mais e mais gente chegava com a mesma notícia. Enfim, formou-se um grande grupo de homens, mulheres e crianças que rumou na direção da casa de Ascânio. Lá chegando, constataram, surpreendidos, um total silêncio. Mas algo havia mudado radicalmente: a casa, com tudo à sua volta, havia desaparecido. No lugar onde estava a habitação de Ascânio só havia um descampado de terra vermelha e mole.

---- Cruz-credo! – gritou o açougueiro com os olhos arregalados – Onde foi parar a casa do Ascânio?

Ninguém sabia explicar o que estava acontecendo e as especulações começaram a fluir até que um grupo de garotos pôs-se a gritar e a mostrar para o céu na direção do vale. A serração daquele lado havia se dissipado e, pairando no ar, com o capote aberto e o chapéu de abas largas, Ascânio sorria e acenava para o povo.

---- Jesus! – Exclamou o sacristão – O padre não vai acreditar, pois ele disse que só os anjos e os santos podem voar. Homens de carne e osso, só de avião.

Uma estrela se destacava no céu e o seu brilho se aproximou de Ascânio que deu uma gargalhada e foi desaparecendo no meio dele, desvanecendo lentamente, como uma luz que vai diminuindo de intensidade até se apagar. Quando já não mais se via a figura de Ascânio no céu, a luz focou o povo no meio do descampado e todos ficaram olhando para cima, pasmados. Repentinamente uma chuva de ovos despencou do alto. Eram tantos ovos que homens, mulheres e crianças ficaram ensopados e formou-se uma imensa poça amarela e pegajosa no chão. As folhas de couve flutuavam no ar descendo lentamente e as crianças agarravam-nas, e as faziam de barcos para boiar sobre o lago de ovos despedaçados. Muitos adultos, ajoelhados, evocavam a Deus e exclamavam que Ascânio havia se tornado um santo; outros, saíram correndo para casa, arrastando seus filhos com medo se serem levados pela luz que vinha do céu; enquanto alguns poucos acreditavam que ele havia sido levado por um objeto voador não identificado.

No dia seguinte, a imensa poça de clara e gema havia secado e do meio do líquido endurecido brotavam flores brancas, amarelas, vermelhas, azuis, roxas e alaranjadas que se sobressaiam entre as folhas murchas de couve.

Nunca mais Ascânio foi visto andando pela cidade e tudo que se disse e ainda se fala dele e da sua casa por aquelas bandas de pedra parece uma lenda. A única coisa que o povo sabe de verdade é que ele cumpriu o que dizia: voou para o infinito, de chapéu e vestindo seu capote com trinta e seis botões prateados. Quanto a mim, nunca vou esquecer aquela noite em que comi arroz, feijão, couve, angu e inhame ao lado de um ser de outro mundo e dormi na sua cama feita de bambu e sobre um colchão de palha e capim.

Pedro Paulo de Oliveira – Texto revisado em 01 de maio de 2013.

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