terça-feira, 29 de julho de 2014

MARLON BRANDO - O MITO OU "A FACE SOMBRIA DA BELEZA?"




"A face sombria da beleza", uma luta corporal entre Marlon Brando e seu biógrafo



 Marlon Brando -teste para Juventude transviada 
 Biografia de Marlon Brando. Na página 108, o biógrafo François Forestier resolve destacar a ruína de Anne Ford. Começa assim: "Na lista de mulheres que passaram pela vida de Brando, que foram machucadas, feridas, esfoladas vivas ou levadas ao desespero - e às vezes ao suicídio -, Anne Ford é uma das mais comoventes". 

Na página 111, Forestier dedica a "A face sombria da beleza" a Anne Ford, "a garota de grandes olhos azuis".

O leitor toma um susto. Uma dedicatória na metade do livro?  De três alternativas, uma. 1. Forestier é dono de um estilo surpreendente e inovador e se localiza a milhares de anos-luz dos biógrafos e das biografias que conhecemos; 2. é um obcecado vingativo que odeia seu biografado; 3. Marlon Brando foi o ator mais talentoso, louco varrido, nefasto e genial que se arrastou sobre a face da terra.

 Ou uma quarta hipótese. Todas as alternativas anteriores ao mesmo tempo, só que não.

Das 195 páginas de "A face sombria da beleza" inexiste uma que não respingue morte, ódio, demência, ruínas, mais morte e mais ruína, assassinatos, incestos, suicídios, delação, vileza, lixo humano. Como se tudo que girasse ao redor de Marlon Brando virasse morte. Um Midas ao contrário. Incluam-se as paisagens e a época em que viveu, o ar que respirou e quem teve o azar de passar por sua vida, tudo culpa de Marlon Brando, que contaminou desde o atol de Tetiaroa nas Polinésias Francesas até a beleza e o talento sobrenaturais de si próprio, tudo apodrecido por conta de sua existência maléfica, tudo - segundo François Forestier -  culpa de Marlon Brando.

Aí o leitor volta ao relato da vida de Anne Ford, e percebe que ela foi apenas mais uma das centenas de namoradinhas de Brando, e constata que o ator a deixou porque a doce garota de grandes olhos azuis literalmente o traiu: abriu o destampatório para uma revista de fofocas da época e falou muita merda. Até do alcoolismo de Dodie, mãe de Brando, assunto tabu para ele, Anne se aproveitou. Brando desaparece. Nunca mais voltaria a falar com Anne.

 François Forestier continua o relato: Outubro de 1983 ( três décadas depois): "O cadáver de Anne é encontrado parcialmente carbonizado. Seu vestido foi arregaçado, a calcinha, arrancada, seu cão caolho monta guarda ao lado. Ela foi apunhalada e estrangulada. O assassino é um mendigo louco (...)  Na história triste que é a vida de Brando - conclui Forestier - invoquemos por algumas linhas a silhueta fantasmagórica da 'garota de grandes olhos azuis'. Ninguém mais se lembra dela. Ninguém. O presente é amnésico. Anne Ford e seu cão caolho... Este livro lhes é dedicado".

O leitor - que também não é nenhuma flor que se cheire - deixa um pouco de lado o linchamento moral perpetrado por Forestier e se esbalda com as histórias cabeludas do Poderoso Chefão. Mas isso tem um preço. Você, leitor incauto, é incluído no "lixo" que foi a vida de Brando e também chafurda no esgoto dele, com muito prazer. Até que você, inopinadamente, se transforma em mais uma vítima do ator genial, graças ao talento narrativo de François Forestier - que se transforma no cachorro caolho que baba sobre a reputação de Brando, como se isso fosse possível.

 No início, confesso, me senti incomodado com as "acusações" de Forestier, pensei comigo mesmo: esse cara é leviano.

Marlon Brando em "O Poderoso Chefão"
 Mas a biografia captura o leitor de tal maneira que não interessa mais se Forestier especula ou se vinga, ou prova o que diz, você se sente usado por Brando, e quer desforra. Exemplo. Na pag. 92, Forestier entrega uma foto muito especial de Brando: "tirada numa festa no Harlem pelo fotógrafo Phil Black. Nela se vê Marlon Brando de boca aberta, olhos fechados, chupando a nobre ferramenta de Wally Cox, com evidente prazer (...) Com o passar dos anos, a foto viria a se transformar numa espécie de símbolo, um exemplo de erotismo masculino. Poderia ser encontrada até à beira do Sena: 'qualquer turista podia comprar'. Hoje, está à disposição na internet".

A tentação de dar uma googada é irrefreável. Em dois minutos, o felatio de Brando foi parar no meu feicibuque. Um detalhe que não é um detalhe, mas a peça de defesa mais contundente do biografado em relação ao seu biógrafo. Forestier pergunta: "a foto incomodaria Brando?" Ele mesmo, Forestier, responde: "Nem um pouco".

Marlon Brando não estava nem aí. São mais de 15 filhos ( legítimos e ilegítimos), amantes, desafetos, Annes, Annas, Viviens, Marilyns, Laurences, Wallys, Taritas, Ritas, Movitas, Cheyennes etc, etc, etc. Brando jamais se preocupou em preservar sua imagem. Somente um homem com uma integridade fora do comum, além de um talento gigantesco, poderia se dar a esse luxo.

E Brando também não estava nem aí para o próprio talento. Imperdoável.  Num mundo de mentira onde qualquer jogadorzinho de futebol ou atrizinha da Malhação, enfim, onde qualquer pé-de-chinelo tem assessoria de imprensa e contrato de imagem, fica difícil, quase insuportável, aguentar o desprezo de Brando pelo próprio talento.

 Difícil aceitar alguém que desdenha do Oscar com tamanha autoridade e majestade; vejam só o que Brando escreveu em Songs My Mother Taught Me, sua autobiografia: "A cerimônia de entrega dos prêmios da academia e todo o estardalhaço que a cerca eleva a representação a um nível que considero indigno (...) a pior coisa que pode acontecer quando alguém fica famoso é acreditar nos mitos criados sobre ele, coisa que nunca fiz... eu poderia ter escolhido uma trilha menos pútrida para seguir, mas sem ter contado com uma educação secundária e sem ter ideia de que ao me tornar famoso me aproximaria de uma usina de lixo; fui obrigado a cultivar uma indiferença diante das consequências de tudo isso... nunca tive paixão por representar, a não ser para suprir as necessidades de minha vida... se um estúdio cinematográfico oferecesse a mesma quantia que eu ganho para varrer o chão no lugar de representar, eu varreria o chão.”

 Curioso que François Forestier omita essa passagem em "A face sombria da beleza".  Num mundo em que imagem é tudo e integridade é nada, difícil de aceitar um homem (ou personagem, tanto faz) que cospe o esperma engolido no próprio prato que comeu.

Tirei a foto do boquete do meu feicibuque quando me dei conta da cilada armada por François Forestier. O biógrafo não admite a grandeza de Brando, prefere julgá-lo e condená-lo - e eu acho isso ótimo. Creio sinceramente que o imparcial é um canalha.  "A face sombria da beleza" é mais do que uma biografia, é uma luta corporal entre biógrafo e biografado.

  Marlon Brando é o personagem escroto de um livro mais escroto do que ele. Nunca escrevi essa palavra, mas vamos lá: "A face sombria da beleza",  biografia de Marlon Brando escrita por François Forestier é - eis a palavra - imperdível.

Diante de tanta baixaria e levianidade me sinto à vontade para reproduzir o final do livro. Em 2004, Brando morre.

As mulheres e parentes levam as cinzas do monstro para o Vale da Morte, a trezentos quilômetros de Los Angeles. "A temperatura em julho é brutal: mais de 50 graus à sombra. Só que não há sombra. Os seres humanos não conseguem respirar, o ar queima as narinas, a relva é carbonizada, o piche das estradas derrete, as rochas estalam (...) Não há água, nem homens, nem insetos. O Vale da Morte é o infinito silêncio (...) Cada um sussura palavras de adeus. E então Tarita (ex- mulher e mãe de Cheyenne enforcada) lança ao vento de fogo as cinzas de Marlon Brando, que voam para o inferno." 

Desejo um biógrafo desse naipe paro nosso Robertinho Carlos.

* "Marlon Brando - a face sombria da beleza"  Fraçois Forestier (editora Objetiva)

Marcelo Mirisola tem 47 anos, é paulistano e radicado na ponte-rodoviária Bixiga-Rio de Janeiro há dez anos. Escreveu mais de uma dúzia de livros, dentre eles destacam-se Bangalô, O Herói Devolvido, Joana a Contragosto e O Azul do Filho Morto. Não se identifica com nenhuma corrente da literatura brasileira contemporânea, embora alguns críticos o considerem o Pedro Alvares Cabral da autoficção aqui em nossas plagas. Também é dramaturgo.



          

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