quinta-feira, 19 de junho de 2014

O TURVO E O TEMPO - FRAGMENTOS...


... Padre Miguel olhou para o lado, pressentindo o inusitado, a presença satânica diante de si, a poucos metros da casa de Deus. Continuou a descer a Rua Direita ensimesmado com aquele sentimento que o tomava por completo. Sobre sua cabeça o céu do Turvo parecia mais azulado do que de costume e o ventinho frio do Tapanhú zumbia nos seus ouvidos carregado de sons distantes no tempo. Sentiu falta do seu pai. Sempre sentiria falta dele, embora o tenha acompanhado por tão pouco tempo até o momento de enclausurar-se no seminário, sabendo que a decisão tinha sido muito mais dele. Aquelas lembranças sempre o deixavam nostálgico e no momento que partiu da Vila Bela, preferia ter ficado mais tempo com o seu pai. Foi embora com o peito apertado. Contudo, nunca se arrependeu ou sentiu mágoa do seu pai pela decisão de enviá-lo para o seminário. 

     Do outro lado da Rua Direita, bem perto da botica, o sol reverberou no cano da espingarda. Padre Miguel Manso olhou para o homem que a segurava presa no ombro e parou no meio da rua. O homem suava as bicas, tinha os olhos esbugalhados e respirava ofegante. Seu dedo tremia no gatilho. O servo de Deus levantou a mão, esboçou uma frase e foi interrompido por um estrondo e um clarão vermelho no ar. Sentiu um impacto no peito e no braço que estava levantado. Foi arremessado para trás, à distância de uns três metros e caiu em gritos. Abaixou a cabeça e constatou que estava todo perfurado de chumbo e sangrando como um porco na hora de ser descarnado. Uma dor lancinante tomou conta de todo o seu corpo. Tentou, debalde, erguer-se e só conseguiu sangrar ainda mais.

Trecho do Livro "O Turvo e o Tempo" de Pedro Paulo de Oliveira.

Imagem: Cássia Oliveira.

    

terça-feira, 17 de junho de 2014

PALAVRA MALDITA




A palavra não dita
na alma fica
prosa na língua
escorre na saliva
desce na chuva
que desce pelo telhado...

A palavra não dita
vai simbora
vira autrora
se perde na aurora.

a palavra não dita
vai na água do rio,
é verve mau dita
inaudita.

a palavra não dita
fica engasgada
impudica
na folha branca
sem escrita. 

Palavra não dita
presas nos olhos
do menino
do amante 
do condenado...

Palavras que se desenham
nos gestos
nos sentidos
na criação
na constatação
de que a vida vai
e não volta


A palavra não dita 
permanece inteira no ar
na mão que se excita
de desejo de a vida criar.
  

Texto de Pedro Paulo de Oliveira.

Imagem: vagalume

sexta-feira, 6 de junho de 2014

CARREGADOR DE OSSOS, O POETA.



Poeta, na canga um monte de ossos,
ossos em um saco:
seus ossos,
os ossos dos outros.

O poeta carrega a morte,
morte na qual não crê
e carrega mortos...
cheiro de madeira velha,
apodrecida, carunchada.

O poeta tem cheiro de passado,
de paixões perdidas
e amores esquecidos...

Depois, escreve
sem saber a razão
disseca o que resta - escreve - sua alma.

Texto de Pedro Paulo de Oliveira.

Imagem: Paul Montjoy

terça-feira, 3 de junho de 2014

O TEMPO DE TUDO.



Existe um tempo para tudo:
tempo de querer, 
tempo de olhar...
de encontrar.

O tempo vai seguindo:
tempo de pedir,
tempo de tocar,
tempo de sentir...
de amar.

E o tempo vai terminando:
tempo de cansar,
tempo de observar,
de acariciar.

E enfim, chega o o tempo final:
tempo de abraçar,
tempo de despedir,
tempo de partir...
tempo de não voltar,
tempo de lembrar...

Tempo de olhar fotografias,
tempo de esquecer
e de seguir em frente,
mesmo sem querer.

Texto de Pedro Paulo de Oliveira.

Imagem: colunas cbn

FANTASMAS


E agora, o que será feito de nós, 
pobres fantasmas, 
perdidos nas ruínas, 
misturados ao pó,
justo agora
que acreditamos
compreender a vida?
Foi tudo tão rápido...
Será que não podia repetir?
O templo, agora, está vazio,
o teatro, também, está vazio,

os dois se aprecem tanto
e o glamour não existe mais...
Somente os fantasmas.

Pedro Paulo de Oliveira

Imagens: Yahoo.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

A ESSÊNCIA DO SER... MORRER, RENASCER



Não quero a flor, desterrada e sem perfume...
Leve-me ao seu jardim povoado de vida
E deixa-me deitar no seu colo trêmulo,
Pois que sua vida tremula em meu peito.

Ouça minhas súplicas silenciosas
Que chega com o rocio das montanhas
E com o farfalhar das folhas dos arvoredos
Quando eu chegar, guerreiro, vencido ou vencedor.

Dê-me suas pétalas perfumadas,
Botão se abrindo em timidez...
Não tema a chuva
Depois vem o sol.

Seus olhos brilham na bruma do alvorecer, eu sei
E seu hálito se mistura às gotas de orvalho,
Seu coração esgarçado de desejo
Explode em descompasso.

Atrás da moita de folhas verdes
Suas mãos finas e sedosas acenam,
Clamam pelo ente amado que ainda não chegou.

Não quero a flor perdida do jardim
Suas pétalas logo estarão murchas e sem vida
Seu caule, sem forças, se dobrará sobre a terra que o sustentou
E o vento das montanhas virá implacável
Levando para longe sua essência, sua matéria decomposta.

Então, não morra, não saia da terra,
Fica no seu jardim,
Fica aí a me esperar
Continua a clamar atrás da moita de folhas
Que chegarei devagar, heroicamente cansado.

Serei seu jardineiro, serei seu protetor
Cuidarei para que não morra
E que do seu ventre floresça a vida.

Ao chegar ao jardim, não quero mais nada
Somente o jardim, o seu jardim, o seu perfume
As suas pétalas, sentir a vida, a sua vida
Deitar, adormecer, replantar e renascer.


Pedro Paulo de Oliveira - 20 de março de 2013

terça-feira, 27 de maio de 2014

PALAVRAS


Escapou uma palavra
palavra ao vento,
não vale - dizem...
sumiu no tempo.
Que nada!
Palavra ecoa,
vibra...
Mesmo surdo,
mesmo mudo
pois que se faz gesto.
Deixa eu lhe falar
de mansinho no ouvido,
sussurrar
palavras melodiosas.
Viu como palavras podem ser carinhos?
Palavras não vão embora, nunca,
ficam presas nas imagens mudas,
no tempo que não termina
na retina que vibra
e desenha o mundo.
Texto de Pedro Paulo de Oliveira.
Imagem: Modern Times - C